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Fraude na Saúde: entenda como clínica recebeu aditivo de 245,7% quatro meses após contrato assinado

08/10/2019 - 11h45min

Atualizada em 08/10/2019 - 15h09min

Estância Velha – As atenções ao esquema fraudulento envolvendo a Previne Saúde e a Secretaria de Saúde, até aqui, estavam voltadas para o grave indício de que a clínica cobrava por exames de imagem (raio-x, ecografia, tomografia) que sequer eram realizados, fato que pode ter gerado um prejuízo financeiro incalculável aos cofres municipais.

Entretanto, o que o Diário irá revelar hoje é tão grave quanto, pois foi o que garantiu as renovações dos contratos com a Previne desde março de 2017, momento em que a prefeita Ivete Grade decidiu romper o contrato com o Instituto de Saúde e Educação Vida (Isev).

A reportagem é resultado de uma apuração jornalística feita a partir da operação Anamnese, desencadeada pela Delegacia de Polícia de Combate à Corrupção (Decor), do Departamento de Investigações Criminais (Deic).

Foi fraudando o processo licitatório que a Previne conseguiu manter os contratos com a Prefeitura e também obter um aditivo de 245% apenas quatro meses após a assinatura do contrato. A clínica investigada venceu sete licitações.

Todos os contratos emergenciais apresentam indícios flagrantes de direcionamento da licitação, ou seja, a Previne Saúde sempre levou a melhor, pois as “concorrentes” não entravam na disputa para ganhar. Estavam ali para fazer número e acobertar a fraude.

Somente dois meses após a operação policial é que a Prefeitura decidiu romper o contrato com a clínica.

EMERGENCIAIS

A administração municipal, neste contexto, tem parcela importante neste esquema, já que nunca se preocupou em promover uma disputa efetiva destes serviços. A equipe de Ivete Grade sempre se valeu da necessidade deste serviço para emendar, um atrás do outro, contratos emergenciais com a Previne, o que é uma prática condenada pela legislação.

A Prefeitura só decidiu promover uma licitação, de fato, no final do ano passado, após intervenção do Ministério Público. De todo modo, quando a tomada de preços é realizada, os documentos obtidos pelo Diário revelam o desinteresse da administração em fazer que se chegue a um resultado idôneo, tudo para que a Previne saísse vitoriosa também neste certame, o que, de fato, aconteceu.

EVOLUÇÃO

A Previne sempre foi um dos fornecedores privilegiados pela administração. Mesmo em períodos de crise, em que faltava dinheiro para honrar os compromissos, a clínica sempre foi uma das primeiras a receber pagamento. Os privilégios não param por aí. A empresa também conseguiu aumentar de uma maneira significativa o valor dos contratos.

(FONTE: TCE/RS)

No primeiro ano em Estância Velha, em 2017, a Previne recebeu R$ 450.161,82 da Prefeitura. Este valor aumentou para R$ 1,2 milhão em 2018. Neste ano, somente pela prestação de serviços nos meses de janeiro e fevereiro, a clínica recebeu R$ 340.629,50. Se for mantida a média, até o final deste ano, os contratos que inicialmente renderam pouco mais de R$ 450 mil chegarão a quase R$ 2 milhões.

Empresas do mesmo dono “competem” com a Previne em licitação para raio-x

Propostas da Radiológica e Unimagem, empresas do mesmo dono

O primeiro contrato assinado entre a Prefeitura e a Previne tinha a finalidade de garantir a demanda de exames de raio-x no Hospital Getúlio Vargas e nos postos de saúde. Esse contrato foi “renovado” em três oportunidades.

No primeiro contrato, assinado em junho de 2017, a Previne venceu a disputa com a proposta no valor de R$ 64.295,78, para realizar até 1.500 exames/mês. O peculiar é que a proposta da Previne não foi o menor valor apresentado. Duas outras empresas apresentaram propostas menores, mas, misteriosamente, ambas não apresentaram à Prefeitura as certidões negativas de débitos válidas e ficaram “impossibilitadas de serem contratadas”. Sobrou para a Previne, que já tinha Vladimir Warnava, o operador do esquema, como procurador.

Quais foram as duas empresas que concorreram com a Previne? Radiológica, de Porto Alegre, e Unimagem, de Cachoeirinha. Ambas as empresas pertencem a Rafael Kern Sant Anna de Lima. O que muda apenas é a forma como o empresário assina as propostas. No orçamento da Radiológica, ele assinou somente como “Sant Anna”, na proposta da Unimagem, assinou como “Rafael Lima”.

CURIOSIDADE

A empresa Radiológica, que em junho de 2017 não pôde competir em Estância Velha por problemas na documentação, curiosamente, venceu uma licitação para prestar serviços de raio-x na Prefeitura de Mostardas, seis meses depois, ou seja, em janeiro de 2018. Mostardas é cidade onde mora Josué Araújo Brum, legítimo dono da Previne.

Parecer jurídico diz que Radiológica e Unimagem, apesar de terem apresentado menor valor, não tinham entregue certidões negativas de débitos

Segundo contrato: empresas sem interesse na licitação

Para o segundo contrato, que aumentou para R$ R$ 71 mil, para realizar 1.800 exames/mês, mais uma vez, coisas suspeitas aconteceram. O documento foi assinado em fevereiro de 2018.

Além de pedir proposta à Previne, empresa “de casa”, a Prefeitura encaminhou solicitações às clínicas Radicom, de Porto Alegre, e Centroeco, de Novo Hamburgo. Acontece que ambas refugaram a possibilidade de prestar serviço à Prefeitura estanciense.

A Radicom retornou à solicitação com pedido de proposta dizendo que não tinha estrutura para se instalar em Estância Velha e a Centroeco informou que não tinha interesse no processo.

Ao invés de solicitar propostas para outras clínicas, a Prefeitura decidiu ignorar a necessidade de embasar a dispensa de licitação com três orçamentos neste caso, e voltou a assinar contrato com a Previne.

Cópias dos e-mails encaminhados pelas empresas que refugaram prestar serviço à Prefeitura estanciense

Dispensa de licitação sem orçamentos, pode? Não pode, é crime!

No terceiro contrato para prestação de serviços de raio-x, pela primeira vez, a administração decide fazer a renovação dele, algo considerado crime pela Lei das Licitações. O contrato com a Previne, em junho de 2018, é assinado pelo mesmo valor do contrato anterior: R$ 71.000,00, para realizar 1.800 exames/mês.

Documento em que Mauri Martinelli tenta justificar a ilegalidade

Em um ofício, o secretário da Saúde, Mauri Martinelli, faz uma lista de “considerando” para chegar ao objetivo final, que era: pedir a renovação do contrato. Martinelli atribui a ilegalidade pela falta de tempo e pelo fato de haver licitação em andamento.

De fato, esse contrato não chegou a ser pago na totalidade, pois, no final de setembro de 2018, a Prefeitura concluiu a licitação e assinou o contrato com a empresa vencedora do pregão, que foi… Previne Saúde.

UM A CADA 10 MORADORES FEZ RAIO-X

Nestes três contratos, chama a atenção o número elevado de exames de raio-x estimados por mês. Nos dois últimos contratos, fazendo uma matemática bastante rápida, concluímos que foram realizados 10 exames de raio-x por dia, 300 no mês. Significa dizer que, entre abril de 2017 e dezembro de 2018, um a cada 10 moradores de Estância Velha fez raio-x.

Um conjunto de trapalhadas
nos contratos de ecografia

Propostas de Clincenter e Previne vieram do mesmo lugar

Essa empresa é a mesma que a outra, o e-mail deste aqui acabou indo parar na proposta daquela ali, e assim por diante. O conjunto de trapalhadas, na verdade, só evidencia a forma despreocupada com que Previne e a Prefeitura estavam lidando na hora de planejar os contratos emergenciais.

No primeiro contrato para exames de ecografia, assinado em abril de 2017, a Previne recebeu R$ 14.579,00 para a realização de até 250 ecografias normais/mensais e até 30 ecografias com doppler/mês. Acontece que 42 dias depois, Prefeitura e clínica descobriram que seriam necessários mais exames.

A solução foi pagar mais. Um aditivo de 24,64% foi assinado para a realização de 312 ecografias normais/mês e 37 com doppler/mês, o que fechou a mensalidade deste contrato em R$ 18.131,00.

Nesta licitação, mais uma vez, há indícios flagrantes de direcionamento da contratação. A Prefeitura pediu propostas para a Previne, que acabou sendo contratada, e para as clínicas do Dr. Ricardo Costa (característica de ser uma clínica fantasma) e Clincenter Medicina do Trabalho, de Novo Hamburgo, empresa em nome de Vladimir Warnava, operador do esquema fraudulento investigado pela Polícia Civil.

Clincenter era para funcionar em um chalé na Boa Saúde, onde nunca funcionou empresa alguma (FOTO: ISAÍAS RHEINHEIMER)

Ou seja, Vladimir Warnava, sócio da Previne e dono da Clincenter, concorreu com ele mesmo. Além disso, Warnava e a Prefeitura não se preocupam em esconder a fraude. A proposta da Previne foi encaminhada pela mesma conta de e-mail que pertence à Clincenter.

ORÇAMENTO CHEGA COM 9 DIAS DE ATRASO

Como se não bastasse todo o indício de direcionamento do processo, ainda há outros elementos que ajudam a compor a fraude. O orçamento da Previne (lembre-se, que chegou pelo e-mail da Clincenter) só foi encaminhado à Prefeitura dia 27 de abril de 2017, nove dias depois que o contrato já havia sido assinado.

Surgem novas empresas dos sócios da Previne

Clinisul e Radpel são empresas de sócios da Previne

No segundo contrato firmado para exames de ecografia, o direcionamento permanece, embora as empresas convidadas para “competir” com a Previne tenham mudado. Neste processo, além da Previne, encaminharam orçamentos as empresas Clinisul, de Pelotas, e Radpel, de Canguçu. A Clinisul é de Luiz Amarildo Aguiar, sócio até hoje da Previne. A Radpel é uma empresa que está em nome de Márcia Schell, contadora da Previne e esposa de Luiz Aguiar.

Este contrato foi assinado pelo valor de R$ 28.750,00, para a realização de até 400 ecografias normais/mensais e até 50 ecografias com doppler/mês. Ou seja, em seis meses “cresceu a necessidade” de mais exames, passando de 250 para 312 (aditivo), e, então, para 400 ecos normais, e de 30, para 37 (aditivo), posterior, para 50 ecos com doppler.

Onde era para funcionar a Clinisul, em Pelotas, há apenas uma casa (IMGEM: GOOGLE)

Radpel indicava à Receita Federal que sua sede funcionava no hospital de Canguçu (IMAGEM: GOOGLE)

Fazer número: empresas que já haviam refutado participar de licitação voltam a ser “convidadas”

O terceiro contrato para exames de ecografia é assinado nas mesmas condições do contrato anterior e, novamente, quem leva a melhor é a Previne. Para esse processo, a Prefeitura disparou e-mails para mais empresas, já pensando na licitação que estava nos planos, mas fica clara a intenção de não se obter retornos eficientes, pois repete o envio para empresas como Radicom, de Porto Alegre, e Centroeco, de Novo Hamburgo, que já haviam se negado a enviar orçamentos para participar dos processos de raio-x. Ainda, voltam a mandar e-mail pedindo orçamento para a empresa de Vladimir Warnava, a Clincenter, de Novo Hamburgo.

Também enviam solicitação de orçamentos para as empresas Unimagem e Radiológica, de Rafael Kern Sant Anna de Lima. Solicitam orçamentos, ainda, para a Sinosclin, Hospital de Sapiranga, e LDS Projetos, entre outras empresas. O retorno é praticamente zero. A empresa LDS Projetos respondeu a solicitação dizendo que atua na área de gestão de pessoas para a Saúde, portanto, sequer prestam serviços de exames de imagem.

UMA PEQUENA GAFE COM GRANDE SIGNIFICADO

Previne manda orçamento como se fosse de Canoas, não mais de Mostardas; há justificativa para a gafe

Quem não deixou de enviar proposta foi a Previne. Mas cometeram uma pequena gafe. Encaminharam o orçamento como se a clínica fosse de Canoas e não mais de Mostardas. O erro é compreensível, já que neste período (abril/18) estava tramitando a licitação (pregão presencial 047/2018), que já havia recebido orçamento para embasar o referencial da empresa Maxxi Saúde, de Canoas.

A Maxxi é dos sócios Bruno Palaver Dall Ago (que tem relação familiar com Amarildo Dall Ago) e de Vanderlei José Warnava, irmão de Vladimir Warnava, procurador da Previne.

245,7%: um aditivo “amigo” para quem
“amigo” sempre foi nos exames de tomografia

O processo para contratar empresa para realizar exames de tomografia também foi vencido pela Previne Saúde. Essa dispensa de licitação foi feita “casada” com última de ecografia, ou seja, as mesmas empresas que já haviam demonstrado desinteresse de participar de licitações em Estância Velha e empresas do mesmo dono foram convidadas a encaminhar orçamentos de tomografia. O resultado também foi quase nulo, dando espaço para a Previne emplacar seu sétimo contrato com a Prefeitura local.

Neste processo, o que merece atenção especial é a assinatura de um aditivo de 245,7% quatro meses após o contrato ser firmado. O contrato, que inicialmente custaria R$ 24.130,00, passou a custar R$ 83.420,00 aos cofres públicos. A desculpa da administração foi de que cometeram um erro ao estimar em 100 exames de tomografia/mês, quando na verdade queriam contratar 320 exames/mês. Contudo, a lei só permite aditivos de, no máximo, 25% neste tipo de contratação. O correto seria a administração encerrar esse contrato e fazer um novo procedimento para o número de exames que faltariam.

Neste processo há indícios, ainda, de que a contratação da Previne Saúde ocorreu sem a observância correta dos valores das propostas enviadas. Foram duas as propostas enviadas, uma da Previne e outra do Hospital de Sapiranga. Pelas planilhas, ao cruzar os dados, é possível constatar que a proposta do hospital sapiranguense é inferior à proposta da Previne. Essa análise é feita pela polícia.

Aditivo ilegal foi autorizado pela prefeita Ivete Grade, quando que a administração deveria ter formalizado um novo contrato para corrigir o erro

CONTRAPONTO

O dono das empresas Radiológica e Unimagem, Rafael Kern Sant Anna de Lima, ao ser questionado sobre sua participação no primeiro processo de contratação de empresa para a realização de exames de raio-x, inicialmente, relatou não recordar da referida licitação. Após, informou que encaminhou apenas um orçamento, em nome da empresa Radiológica, por solicitação de Maria Pereira, telefonista da Prefeitura de Estância Velha.

Ele revelou ser pouco provável ter encaminhado orçamento em nome da Unimagem, sua outra empresa. Declarou também que de todos os envolvidos no esquema conhece apenas Vladimir Warnava. “Um dia esse (Vladimir Warnava) me ligou querendo alugar meus equipamentos”, informou.

Rafael Sant Anna disse, ainda, que prestou serviços em Estância Velha, quando o hospital era administrado pelo Isev e pela empresa MedPlus, mas que retirou seus equipamentos do local em meados de junho de 2017.

O Diário não conseguiu contato com Luiz Amarildo Aguiar, dono da Clinisul e sócio da Previne. Também não conseguiu contato com Márcia Shell.

O mesmo aconteceu com Vladimir Warnava, que instalou uma nova clínica em Portão. O Diário entrou em contato com a KM Medicina, já que o número do telefone celular dele dava desligado, mas até o fechamento, o citado não retornou para se manifestar.

O dr. Ricardo Costa, que, em tese, encaminhou orçamento para concorrer no primeiro contrato de ecografia, não retornou o e-mail enviado pelo Diário solicitando esclarecimentos. O e-mail é o único canal de contato obtido pelo Diário para falar com o profissional.

O ex-secretário de Saúde, o técnico em Enfermagem, Mauri Martinelli, disse que não iria se manifestar tendo em vista que o caso ainda está com a polícia. “Estou aguardando o resultado da investigação, só vou me manisfestar depois disso”, colocou.

Sem manifestação

A Prefeitura informou que respostas sobre o assunto só podem ser dadas pelo assessor jurídico, Tiago Mainardi. Contudo, o servidor estava incomunicável nesta segunda-feira, participando de uma audiência em Porto Alegre. Em contato anterior, a Prefeitura informou que não se manifestaria, pois o caso ainda está sendo investigado.

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