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O outro lado do “fique em casa”: a dura rotina de famílias pobres em meio a pandemia
Ivoti/Estância Velha – A palavra de ordem durante o enfrentamento da pandemia de Coronavírus é o isolamento. Este conceito levou famílias do País inteiro – e a maior parte do Mundo – a se resguardarem no conforto do lar. Mas o que acontece quando a morada não é o lugar mais seguro para se estar em um momento como esse?
Uma área entre Ivoti e Estância Velha, que há décadas enfrenta problemas estruturais em razão de impasses legais, abriga 53 famílias que vivem à mercê da sorte. No acesso pela Avenida Perimetral em Ivoti, moram cerca de 200 pessoas, destas, 60 são crianças. Na localidade com ruas de chão batido e saneamento básico precário, a água vem de poços abertos ao ar livre.
Este último fator é o maior tormento em décadas da comunidade. Pelo imbróglio entre os municípios, a estrutura montada é oriunda da iniciativa popular, que com parcos recursos, fez o que pôde para prover sua subsistência. Ações que comprovadamente põe em cheque, em meio ao surto mundial, a saúde dos seus residentes.
Sem trabalho e sem perspectivas
O casal Felipe e Bruna tem duas filhas pequenas. Ela é desempregada, e ele se tornou um há 10 dias. Para o rapaz foi proposto trabalhar metade da carga horária, recebendo igualmente seu salário reduzido. Ou ser dispensado para poder obter todos os benefícios que a lei trabalhista poderia possibilitar. Escolheu a segunda sugestão. “Ou você faz um acordo e recebe seus direitos, e se torna mais um desempregado em busca de algo no meio dessa pandemia, ou topa trabalhar pela metade do salário por algum tempo, sem a garantia de seguir trabalhando a curto prazo”, avaliou Felipe.
A maioria dos residentes ganha a vida com pequenos serviços, os chamados “bicos”, ou trabalhando no corte de mato de acácia. Nesta modalidade, os moradores costumam ficar semanas afastados de casa. A garantia de renda está ligada a capacidade do trabalhador em executar o serviço. Quanto mais aplicado ele for no corte, maior o lucro. “Se você trabalhar direitinho, consegue tirar em média R$ 400 por semana. Mas se chover, por exemplo, o trabalho já fica interrompido”, explica Felipe. O fator climático leva os moradores a trabalharem mais no campo durante o verão. A chegada do inverno e a pandemia trazem preocupação na renda familiar.
Em outros segmentos, de acordo com Bruna, os moradores também enfrentam dificuldades para exercer uma profissão. Na sua opinião, há um preconceito velado do empregador. “A gente acredita que há uma discriminação conosco. Porque não temos assistência ou formas de nos proteger da doença. Na teoria, há um fator de risco maior aqui”, comenta.
A salvação vem do auxílio
Tiago é outro morador que viu a epidemia afetar seus ganhos. Há uma semana sem serviço, ele garante que “faz de tudo um pouco”. Mas, em meio ao caos, não consegue prover o sustento da família. “Pior que serviço tem. Mas não posso sair. E quem contrata, ou está sem dinheiro ou não quer correr o risco”, assegura. Com ele, moram ainda a esposa e dois filhos, sendo um deles autista. Fralda e leite começaram a faltar e a situação preocupa. “Ficar em casa é muito ruim”, declara.
A principal fonte no momento, nesta hora, é o auxílio emergencial do governo federal. Todos recebem benefício através do programa Bolsa Família. No entanto, o valor recebido foi substituído pelo no repasse federal. Para alguns, a alteração foi benéfica. A média de valores apurado no local foi de R$ 300 reais, ao passo que o novo auxílio repassa R$ 600. Mas em razão da falta de trabalho, o benefício é pouco comemorado. “Com R$ 600 se paga o básico e especialmente a alimentação. Estamos sorteando as contas que vamos pagar, não tem outro jeito”, argumenta Felipe.
Água: de aliada a vilã
Considerada o meio mais simples e eficaz de se prevenir contra a doença, a higienização constante com água e sabão se tornou uma loteria para os moradores. Em razão da precariedade das instalações, a água é considerada imprópria para o consumo. Tornar ela um meio eficaz de proteção não é uma garantia na localidade. “Você vê nas campanhas o aviso para lavar as mãos. Mas é difícil para nós seguir estes regramentos básicos com a água que temos”, lamenta Bruna.
Um dos principais problemas apontados, relacionados à distribuição da água, está nos animais. Há muitos cães soltos circulando pela localidade, que defecam e urinam em todas as partes. Com a chuva, estes detritos são levados para os poços, que sem a devida estrutura de proteção, acabam distribuindo as impurezas para as casas. Dores estomacais são comuns na localidade.
Se isolar em um local isolado
Observando à volta, se percebe que há pouca aglomeração de pessoas nas casas, no entanto, ninguém foi visto usando máscaras na localidade. O morador Felipe, no entanto, garante que o uso do equipamento é respeitado quando os residentes deixam a vila. “Dificilmente as pessoas saem de casa aqui. Todos se conhecem, nosso convívio social é aqui”, assegura.
Ninguém na comunidade apresentou qualquer sinal de contágio, mas o temor é muito grande. Na perspectiva dos moradores, a contaminação de um vizinho pode ser fatal para a comunidade. “Temos muito medo. A chance de espalhar seria enorme. E em meio a essa indecisão territorial, o tempo que se levaria para termos atendimento poderia ser fatal. Da entrada da vila para fora, estamos sozinhos”, desabafa Bruna, ao passo que o marido decreta: “quem pegar Coronavírus aqui está morto”.